O renascimento dos psicodélicos na ciência se estabelece, cada vez mais, como um fenômeno resistente. Apesar de ainda permanecerem ilegais em grande parte dos países, só a promessa de que substâncias como psilocibina, MDMA e DMT podem tratar transtornos mentais graves movimentou, em 2021, um mercado de 4 bilhões de dólares, e tem o potencial para chegar a 7,58 bilhões de dólares até 2026.
Não à toa, o South by Southwest (SXSW), o maior festival de inovação e tecnologia do mundo, dedicou uma sequência de palestras (ou “trilha”) sobre o tema.
O evento, que aconteceu entre os dias 10 a 19 de março, em Austin (Texas), nos Estados Unidos, chamou a atenção para as principais tendências que devem despontar na área nos próximos meses.
“Essas substâncias estão sendo cada vez mais aceitas nos Estados Unidos, e já há vários estados onde o uso médico é legal. Então criamos uma trilha para explorar como essa indústria está evoluindo”, explicou Hugh Forrest, diretor do SXSW, em um evento para jornalistas brasileiros, reforçando o fato de que, pelo menos um psicodélico, a psilocibina, já tem uso autorizado em estados como o Oregon e o Colorado, nos EUA.
Uma das palestras mais disputadas foi a do micologista Paul Stamets, que dedica sua vida a entender os fungos. No painel “Como os cogumelos com psilocibina podem ajudar a salvar o mundo”, o especialista falou sobre o uso tradicional da substância por sociedades indígenas, e explorou seu potencial neurológico, com base nos estudos que desenvolve, para os quais já estão sendo planejados estudos clínicos.
Além das questões exclusivamente de saúde mental, a relação dos psicodélicos com a tecnologia também chamou atenção dos participantes do evento. Ferramentas como a realidade virtual aparecem como soluções possíveis para auxiliar a psicoterapia, seja para guiar a experiência, promover uma integração com custos mais baixos ou reforçar o que foi vivido sob o efeito das substâncias.
“Quando os pacientes assistem novamente às gravações, isso os lembra do que estavam pensando e do que sentiam durante a experiência psicodélica”, disse, em um painel, o psiquiatra Prashanth Puspanathanele, cofundador da Enosis Therapeutics — uma empresa que se prepara para oferecer programas de realidade virtual aos terapeutas da Austrália, país que já autorizou o uso legal de psilocibina e MDMA para tratamentos mentais.
Para Murat Yucel, professor da Universidade Monash e diretor da clínica de pesquisa em neurociência BrainPark, a realidade virtual pode ser tão eficaz quanto qualquer outro método de tratamento. Como exemplo, ele exibiu vídeos de cassinos simulados, que poderiam ser usados para o tratamento de dependência em jogos; e mostrou também cozinhas sujas, sugerindo que pessoas com transtorno obsessivo compulsivo poderiam usar esses espaços para lidar com suas questões de limpeza. “Você pode sentir nojo tão bem quanto na vida real. Você pode torná-lo portátil e trazer coisas para o escritório que normalmente não consegue”, afirmou.
Mas, para alguns especialistas, o uso da realidade virtual para tratamentos psicodélicos pode levantar questões que ainda precisam ser pensadas. Isso porque existe o risco dos pacientes ficarem sobrecarregados com os estímulos sensoriais. “Isso pode desencadear um problema latente, que você não experimenta até tentar”, afirmou o psiquiatra Richard Friedman, da Weill Cornell Medical College, em uma entrevista posterior à Bloomberg.
Alguns painéis também se dedicaram a apresentar modelos que repensem o modo de consumo atual, baseado na superprodução e na exploração. De acordo com pesquisadores da área, na medida em que os psicodélicos naturais — derivados de plantas e fungos, como a ayahuasca, a iboga e os cogumelos — fazem parte do conhecimento tradicional de diversos povos indígenas, é importante pensar em formas de incluir essa diversidade, evitando reforçar a vulnerabilização a que muitos estão expostos.
No painel “Relacionamento correto e fitoterapia”, por exemplo, os participantes discutiram o conceito de “relacionamento correto”, um princípio orientador indígena que descreve a melhor forma de interagir com os outros seres do mundo, sejam pessoas, plantas, animais, culturas e ecossistemas.
Outros painéis promoveram uma aproximação mais subjetiva da medicina, mostrando que os psicodélicos podem ser mais complexos do que seus efeitos farmacológicos. Em um dos painéis de mais destaque, “Mentes Abertas: Inovações em Consciência, Psicodélicos e Saúde Mental”, o médico e escritor Deepak Chopra reforçou a importância de alinhar os tratamentos psicodélicos com um trabalho de investigação interna, a fim de atingir a cura.
“À medida que a medicina se torna holística e tratamos não apenas o corpo físico ou o cérebro, mas também a mente, as emoções, os relacionamentos e nossa ligação com a natureza, os psicodélicos nos darão uma visão de outros mecanismos de autorregulação, cura, homeostase e perda do medo da morte”, afirmou o médico.
“Tenho fé suficiente de que nossos avanços culturais e científicos coletivos ocorrem para que isso [os psicodélicos] seja parte de tudo o que fazemos na medicina tradicional e nas profissões de cura, haverá percalços aqui e ali, e temos que entender que o movimento da contracultura foi uma parte necessária dessa evolução.”
O evento contou com mais de vinte palestras dedicas exclusivamente a entender o fenômeno dos psicodélicos com toda sua complexidade. Para muitos pesquisadores e especialistas, é uma ótima oportunidade para levar um tema que ainda carrega tantos estigmas a uma audiência mais ampla.
É possível acessar o áudio de alguns painéis do SXSW, em inglês, aqui.
Imagem: Reprodução.