A jornalista Angélica Santa Cruz viajou ao Acre, em setembro de 2022, para contar como foi a Quarta Conferência Indígena da Ayahuasca, um encontro de cinco dias que reuniu diversos representantes dos povos originários, às margens do Rio Juruá, a 18 km da fronteira entre Brasil e Peru.
Na reportagem, publicada na edição de janeiro da revista piauí, Santa Cruz falou sobre a importância do encontro, no momento em que os psicodélicos enfrentam um aumento de popularidade na ciência, nomeadamente a ayahuasca, que vem se mostrando eficaz no tratamento de transtornos mentais como a depressão.
O evento contou com 244 indígenas de etnias diferentes. Além deles, estavam também 145 convidados não indígenas, representados por cientistas, antropólogos, integrantes de religiões ayahuasqueiras e entidades parceiras, que participaram somente de uma mesa no quarto dia, falando sobre o Protocolo de Nagoya (um acordo internacional de governança de biodiversidade) e o interesse das grandes farmacêuticas nas medicinas indígenas.
Por e para indígenas
A Conferência Indígena da Ayahuasca foi um evento criado por indígenas e para indígenas, em resposta à AYA, a Conferência Mundial de Ayahuasca, organizada pelo Centro Internacional para Educação, Pesquisa e Serviço em Etnobotânica (Iceers, na sigla em inglês), uma entidade espanhola que se dedica a promover os conhecimentos sobre as plantas psicoativas. Na ocasião, nenhum indígena foi convidado.
“Escrevemos cartas para os organizadores perguntando como nós, os povos originários amazônicos que cuidamos dessa medicina ao longo dos tempos, e daqui do Acre, de onde ela saiu para o mundo, não fomos convidados?”, conta Iskukua Yawanawá, jovem liderança do povo yawanawá.
A chamada de atenção surtiu efeito, e os indígenas foram convidados para a segunda AYA, que aconteceu em Rio Branco, em 2016. Mas eles não gostaram de ser tratados como coadjuvantes.
Assim, em 2017, representantes dos povos que detêm o conhecimento sobre a ayahuasca há tempos resolveram criar seu próprio evento. A primeira conferência foi realizada em dezembro de 2017, na aldeia Barão do Rio Branco da Terra Indígena Puyanawa.
Contra a banalização
Segundo Santa Cruz, os pajés do encontro demonstraram satisfação por perceber que o chá amazônico feito a partir da mistura da chacrona e do jagube está sendo cada vez mais reconhecido no mundo. Mas, ao mesmo tempo, eles temem sua banalização, além da biopirataria e do impacto negativo que a procura pelas plantas pode ter na floresta. Logo, demonstram-se frontalmente contra as tentativas de registro de patente da bebida.
No último dia da conferência, as lideranças elaboraram uma carta expressando 29 pontos de preocupação. “Afirmamos que a ayahuasca é o fio condutor da vida, um conhecimento ancestral que resistiu à colonização e permanece vivo na cultura de diversos povos indígenas, seus guardiões desde os tempos imemoriais. Ressaltamos que os ensinamentos indígenas são uma inspiração diante das mudanças necessárias para proteger a vida no planeta e para revisar a própria ideia de humanidade”, diz o primeiro item do documento.
Resgate ancestral
A reportagem traz ainda relatos que mostram como a ayahuasca ajudou no resgate da identidade de diversos povos amazônicos, que viram suas vidas serem perdidas pelas invasões dos não indígenas. “Dependendo de quem olha, as histórias podem ser lidas como um fenômeno científico ou um acontecimento espiritual. Relatadas ali por seus protagonistas, no esplendor da floresta, a impressão era a de que, afinal de contas, tanto faz”, escreveu Santa Cruz.
“Minha avó era filha de um grande curandeiro”, contou Osmildo Silva da Conceição, pajé do povo kuntanawa, uma etnia que não foi exterminada por pouco e acabou virando um dos casos mais emblemáticos do resgate identitário pelo chá. “Ela foi tirada das matas do Rio Envira em uma correria, com 11 anos de idade. Passou três anos com um patrão, que depois a entregou para o cara que tinha massacrado a nossa família.”
De acordo com Conceição, mesmo se casando com vários seringueiros e fazendo parte da sociedade do seringal, a mulher não esqueceu sua língua e seus conhecimentos sobre plantas medicinais, que foram repassados à filha.
Antes que o conhecimento se perdesse por completo nos seringais, alguns kuntanawa remanescentes passaram a promover intercâmbios com outros povos, como os kaxinawás e os yawanawás, também do tronco linguístico pano. “Boa parte do resgate linguístico – o nome dos peixes, das caças, das árvores, das medicinas – veio das canções ayahuasqueiras que escutaram nessas incursões por outras aldeias. Nelas, eles participaram de rituais com pajés respeitados e aprenderam a preparar o chá”, escreve a jornalista. “Com o ressurgimento do xamanismo kuntanawa, veio também o arcabouço de cânticos, danças, pinturas corporais, artesanatos e a intimidade com as plantas sagradas – era um povo voltando.”
O resgate da identidade através da ayahuasca também ajuda na auto-estima desses vários povos, os quais, por séculos, foram massacrados. Agora, como lembra Santa Cruz, o que eventos como a Quarta Conferência Indígena da Ayahuasca fazem é mostrar que os próprios indígenas pretendem, não só cuidar do seu sistema de conhecimento, como convencer o mundo de que ele é primordial.
Como resumiu Francisco Apurinã-Ywmuniry, doutor em antropologia pela UnB e líder respeitado em sua aldeia:“Muitos dizem que não temos ciência, falam que o que temos é um mero conhecimento da tradição! Como não temos ciência? O que é a ayahuasca, então?”.
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