“Como podemos dizer que os psicodélicos estão mudando o mundo sendo que meus professores sequer têm papel higiênico?”, questionou a curadora de arte psicodélica e ativista jamaicana Gabriela 91, referindo-se aos mestres que lhe ensinaram o caminho dos psicodélicos naturais, como a ayahuasca, que vem sendo estudada para o tratamento de depressão grave.
De acordo com o relatório da Valhalla Ventures, em 2021, o setor dos psicodélicos levantou US$ 540 milhões em investimentos. Mas, dificilmente, esse dinheiro chegou às comunidades indígenas, as quais, durante milênios, desenvolveram protocolos e fizeram uso ritualístico das mesmas substâncias que agora são encaradas como ferramentas potentes no tratamento de transtornos mentais.
A declaração de Gabriela 91 foi uma das mais impactantes no painel do Festival Wonderland, realizado em novembro, em Miami, nos EUA (veja o vídeo no instagram da Beneva), que discutiu como o conhecimento e as práticas dos povos indígenas e das comunidades tradicionais podem contribuir com a ciência ocidental.
“Não acho que bilhões de pessoas vão usar psicodélicos ou se beneficiarão deles, mas nós podemos disputar os recursos e todo o dinheiro que está sendo feito para ajudar as crianças, ajudar garotas como eu, que nunca tiveram uma chance”, convocou a ativista, que foi estuprada, agredida, expulsa de casa, e só conseguiu se reestruturar através do uso ritualístico do chá de ayahuasca.
A bebida feita com as folhas da Chacrona e o cipó Jagube é usada por diversas etnias da região amazônica, as quais, cada vez mais, ocupam os espaços de discussão. De acordo com alguns representantes indígenas, a expansão dos psicodélicos naturais pode ser o veículo perfeito para transportar sua mensagem para o mundo.
“Para nós, essa planta [a ayahuasca] não é só um barato ou uma curtição. Para nós, ela é muito sagrada e muito profunda. Por isso, nós temos respeito. A gente acredita que a expansão da planta vai mostrar que a mudança climática é fruto das nossas ações”, explicou no evento o músico e pajé Mapu Huni Kuin, do Acre (veja o vídeo aqui). “Nós, do povo Huni Kuin, acreditamos que essa planta vai fazer com que a gente saia do individualismo e pense mais no coletivo.”
Durante os últimos séculos, as percepções de pessoas como Mapu foram ignoradas ou rebaixadas. Ainda hoje, os conhecimentos tradicionais são subvalorizados em razão de uma ciência que se estabelece como a única forma de interpretar o mundo. Para não repetir padrões colonizadores em pleno século 21, é preciso entender o paradigma desses saberes não ocidentais.
“Para definir o que são os conhecimentos tradicionais, é preciso, além de questionar a ideia universal de ciência, questionar também a ideia de que a ciência contemporânea seria superior, ou mesmo mais eficaz, do que outros sistemas de conhecimento. Enquanto o conhecimento científico pretende a universalidade, os saberes tradicionais são múltiplos por definição”, pontuou a antropóloga Isabel de Rose, na quarta edição dos Encontros Psicodélicos.
“Também é preciso se afastar de uma visão rígida, estática e essencialista sobre os conhecimentos tradicionais (…). O senso comum ainda prega essa visão do conhecimento tradicional como um conjunto fechado, que deve ser preservado numa visão meio museológica. Com isso, surge uma série de tendências, como a homogeneização, romantização, exotização, colonização, descontextualização e instrumentalização.”
É por isso que, para pensar em um sistema de aproveitamento dos psicodélicos naturais no qual não haja prejuízo às culturas que os utilizam há milênios, é preciso ouvir os representantes destas culturas.
“Existe muita gente que pesquisa ayahuasca dentro da academia, nas áreas da medicina, farmácia, bioquímica, antropologia; muitos religiosos e líderes de culto que defendem o reconhecimento de suas ‘novas tradições’, e muitos entusiastas à procura de uma ‘conexão ancestral’ que possa ‘salvar a humanidade’. Poucos deles têm ciência da complexidade do desafio vivido pelos povos indígenas”, escreveu, em um artigo, a professora Daiara Tukano, mestre em Direitos Humanos, com especialização em memória e verdade dos povos indígenas, pela Universidade de Brasília.
Para a repsentante do povo Tukano, “talvez, mais importante que decifrar a química do kahpi [ayahuasca], como funciona no cérebro e quem pode comprar mais ou vender melhor, seja aprender a respeitar e celebrar nossa diversidade.”
Imagem: Mali Maeder/ Pexels.