Este artigo foi destacado pela Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS), uma das principais organizações voltadas para o uso terapêutico de psicodélicos do mundo. O texto original foi escrito por Santiago Federico Richetti, e publicado em espanhol, no site El Planteo, sendo reproduzido ainda em inglês, no The Dales Report.
Aqui você pode ler o trabalho na íntegra:
O consumo de substâncias de diversos tipos é inerente ao ser humano. Há milênios, indivíduos pertencentes a diferentes culturas, sociedades e civilizações buscam sensações de prazer ou conforto através do êxtase. Desde que não seja abusivo, o uso de substâncias, incluindo a ibogaína, não representa um problema em si.
Entretanto, quando o uso é contínuo e excessivo, isso pode trazer consequências negativas de grande impacto, incluindo mudanças no comportamento, danos ao organismo e até a morte. O uso a longo prazo também pode caracterizar uma dependência, ou seja, o consumo excessivo e prolongado de uma substância da qual o indivíduo não pode prescindir.
Hoje em dia, as dependências são uma das condições mais difíceis de tratar. Mas, na esteira do renascimento dos psicodélicos na ciência, várias pesquisas já apontam uma substância promissora para quem luta contra essa condição: a ibogaína.
A dificuldade no tratamento da dependência reside principalmente no fato de que os comportamentos aditivos tendem a modificar a estrutura e o funcionamento do cérebro. Reverter essas modificações envolve um esforço enorme.
O caminho para a recuperação costuma ser um processo longo e sinuoso, no qual o paciente pode sofrer inúmeras recaídas. As estratégias terapêuticas compreendem programas altamente estruturados que integram diferentes aspectos psicológicos, fisiológicos, comportamentais, farmacológicos e sociais.
De acordo com o Instituto Nacional de Abuso de Drogas (NIDA, na sigla em inglês) dos EUA, as dependências, como outras doenças crônicas, não são curáveis, embora possam ser tratados com sucesso. O objetivo do tratamento é alcançar a recuperação sustentada, evitando o uso, e levando a uma abstinência prolongada. Ou seja, prevenir recaídas para que o paciente supere a síndrome de abstinência. O uso de certas substâncias, em combinação com a psicoterapia, pode ser uma maneira eficaz de atingir esse objetivo. No entanto, as taxas de recaída de pessoas tratadas por transtornos por uso de drogas atingem 60%, segundo dados do NIDA.
Isso reflete as limitações do tratamento tradicional de dependência. Nos últimos anos, uma quantidade considerável de pesquisas forneceu evidências que levem a alternativas com melhores resultados. Os estudos sobre as propriedades da ibogaína para tratar pacientes com problemas de dependência datam de 1962, quando o jovem pesquisador Howard Lotsof descobriu por acaso a capacidade dessa substância de interromper a síndrome de abstinência de heroína.
Atualmente, existem inúmeros estudos que demonstram cientificamente que a ibogaína tem a capacidade de reverter as alterações neuroadaptativas que induzem comportamentos aditivos. Este artigo retoma alguns dos resultados mais relevantes a esse respeito, explorando a possibilidade de tratar a dependência com segurança por meio de terapias baseadas na administração de ibogaína.
A ibogaína é um alcalóide que pode ser extraído das plantas Tabernanthe iboga e Voacanga africana, que crescem naturalmente na África equatorial, particularmente no delta do rio Ogoué e nas florestas tropicais do Congo e do Gabão. O uso medicinal e cerimonial desta planta tem uma longa história. Há evidências de que os pigmeus da Bacia do Congo ingeriam iboga para seus rituais sagrados há pelo menos 20.000 anos.
Desde então, diferentes povos da região têm feito uso das propriedades estimulantes da iboga, conferindo-lhe um importante valor cultural. Um caso paradigmático é o da religião Bwiti, originada no Gabão mas com braços na Guiné Equatorial e Camarões, que há cerca de três séculos utiliza esta planta para promover o crescimento espiritual dos seus seguidores e resolver questões relacionadas com a restauração de saúde.
No Ocidente, as pesquisas e os primeiros usos terapêuticos da ibogaína datam do início do século XX. O primeiro a comercializar um extrato de iboga em comprimidos para uso medicinal foi o médico Albert Schweitzer, em 1939. Esse medicamento, batizado por Schweitzer de Lambarene, era reservado para uso hospitalar e foi proibido em 1967 por seus efeitos toxicológicos e expansores.
Os estudos sobre os efeitos benéficos da ibogaína na saúde mental têm, no entanto, seu ápice nas pesquisas de Howard Lotsof. Sabe-se que o jovem Lotsof era dependente de heroína e que,3 em 1962, descobriu por acaso que a ingestão de ibogaína ajudava a diminuir os sintomas da síndrome de abstinência. Essa descoberta despertou seu interesse científico pelo assunto e, pelo resto da vida, Lots se dedicou a pesquisar essa substância e seus efeitos em pacientes com problemas de consumo dependente.
De particular relevância são os estudos publicados por este autor e seus colaboradores entre os anos oitenta e noventa do século passado. Os ensaios conduzidos sob a direção de Lotsof entre 1989 e 1993 mostram os efeitos desintoxicantes da ibogaína em pacientes com problemas de dependência de opioides. De fato, 29 dos 33 participantes desses estudos demonstraram desintoxicação completa.
No entanto, não foi até 1993 que a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA aprovou o primeiro estudo de fase 1 da ibogaína. Desde então, o número de estudos sobre o potencial da substância tem aumentado constantemente. Nos últimos anos, a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (MAPS) desenvolveu dois estudos observacionais para definir a eficácia a longo prazo do tratamento da dependência assistida por ibogaína. Mas o estudo com o maior número de pacientes até agora vem do Brasil, onde o uso da ibogaína é autorizado sob supervisão médica, em hospitais.
No Brasil, a ibogaína não é registrada, nem proibida. Além disso, desde 2013, a Anvisa permite a importação de medicamentos não registrados, desde que seja para uso pessoal e que o paciente tenha receita médica. No estado de São Paulo, existe até um decreto de 2016, que exige que o tratamento com ibogaína seja obrigatório sob supervisão médica e em ambiente hospitalar. Foi neste contexto que se produziu o estudo sobre a dependência da ibogaína com a maior amostra de participantes realizada até hoje.
A pesquisa foi realizada em 2014 por um grupo de cientistas brasileiros, que analisou os resultados de 75 pacientes tratados com uma ou mais doses de ibogaína. Entre as mulheres da amostra, 100% declararam-se abstinentes no momento da entrevista. Entre os homens, 72% permaneceram abstinentes, com 57% sem nenhum tratamento paralelo. Para 66 pacientes, foi possível comparar o período médio de abstinência antes e após o tratamento. Entre os dois gêneros houve aumento significativo do tempo de abstinência.
Em outro estudo realizado em 2021, Bruno Ramos Gomes descreveu sua observação participante em diversas clínicas brasileiras que realizam terapias assistidas com ibogaína, bem como o acompanhamento de uma série de pacientes que se submeteram a esse tipo de tratamento para combater as dependências. Segundo o autor, o espaço que a ibogaína vem ganhando no tratamento da dependência química no Brasil responde, antes de tudo, à sua eficácia no combate aos sintomas de abstinência.
Os efeitos da ibogaína diferem de outros psicodélicos, como LSD, psilocibina e mescalina, pois, além de provocar alterações na percepção, ela possui propriedades dissociativas.
Segundo diversos relatos de quem já teve a experiência, esta substância produz uma intensa sensação onírica que induz a um profundo estado de introspecção e a ativação da memória de longo prazo. Estima-se que as propriedades psicoativas da planta proporcionem momentos de realização e autocompreensão, reconectando o indivíduo com sua própria natureza e trazendo à tona processos e padrões comportamentais não saudáveis. Isso explica por que a maioria das pesquisas sobre essa droga se concentra em seu uso potencial para tratar dependências.
Segundo Mandrile e Bongiorno de Pfirter, é possível afirmar que os efeitos da ibogaína se devem principalmente a “uma ocupação dos receptores celulares de serotonina, onde predomina a ação dos centros simpáticos antagonistas”. Os autores não hesitam em considerar esta substância como uma das mais ativas no Sistema Nervoso Central.
Por sua vez, Alper e Lotsof sustentam que os efeitos neurológicos da ibogaína se devem à sua capacidade de antagonizar o receptor nicotínico de acetilcolina nAChR por meio de seu metabólito 18-MC, promovendo a diminuição da sensibilidade ao fluxo de dopamina no núcleo accumbens, o núcleo neutro que faz a interface entre motivação e ação motora. Assim, a ação da ibogaína intervém no sistema de recompensa, que pode ser o mecanismo de ação que tende a reduzir a síndrome de abstinência.
A ibogaína produz múltiplos efeitos no Sistema Nervoso Central e no Sistema Cardiovascular. Esses efeitos variam, no geral, a depender de diferentes fatores, desde a dose administrada até outras questões relacionadas ao histórico médico do indivíduo, predisposição a diferentes doenças, idade e ambiente social. É por isso que é necessário considerar esses fatores, conhecendo o histórico médico do paciente e realizando exames antes de iniciar qualquer tipo de tratamento.
A natureza controversa deste tipo de intervenção terapêutica reside, principalmente, nos riscos que acarretam. Entre os efeitos colaterais mais frequentes estão a presença de tontura, náusea, vômito, dificuldade de coordenação motora e taquiarritmias. Por isso a necessidade de realizar tratamentos com ibogaína em ambientes hospitalares, sob estrita supervisão médica e com exames prévios necessários para detectar qualquer tipo de sintoma que possa representar um risco ao paciente.
“A ibogaína é contraindicada em alguns pacientes com problemas cardíacos”, diz Bruno Rasmussen, diretor médico da Clínica Beneva, que oferece tratamentos com ibogaína no Brasil. “Cada caso deve ser analisado individualmente. Com preparação e testes adequados, mesmo certos pacientes com sopros cardíacos ou ataques cardíacos, por exemplo, podem ser tratados com segurança no hospital.”
A ibogaína também pode ser contraindicada em pacientes com transtornos psiquiátricos, como esquizofrenia, psicose, transtorno bipolar ou transtorno de personalidade limítrofe. “O psiquiatra é fundamental para analisar a presença desses transtornos e sua gravidade. Em certos casos, esses pacientes costumam ser excluídos do tratamento com ibogaína se houver a possibilidade da substância causar o reaparecimento ou agravamento dos sintomas”, explica Rasmussen.
Da mesma forma, é preciso considerar que nem todos os pacientes conseguem lidar com a experiência introspectiva produzida pela ibogaína, podendo sofrer episódios de ansiedade e paranóia. Aqui, novamente, destaca-se a necessidade de uma avaliação psiquiátrica e psicológica completa antes de iniciar a ibogaína. Além disso, é fundamental, em virtude da redução de riscos, o acompanhamento de profissionais de saúde mental durante o tratamento.
Também é de particular importância evitar qualquer consumo de drogas psicoativas algumas semanas antes e durante a administração do tratamento, uma vez que a interação da ibogaína com outras substâncias pode aumentar os riscos cardíacos e psiquiátricos dos pacientes.
No contexto internacional, o status legal da ibogaína restringe seu uso medicinal em vários países. Nos Estados Unidos e em vários países europeus esta substância é proibida. No entanto, é possível encontrar o tratamento em países como o México, onde existem vários centros privados que recebem pacientes de várias partes do mundo. No entanto, os regulamentos do governo mexicano não exigem que os tratamentos sejam realizados em ambiente hospitalar, nem que seja usad a ibogaína em sua forma purificada.
Já no Brasil, conforme indicado acima, o uso é autorizado desde que realizado em ambiente hospitalar e sob a devida supervisão de profissionais médicos. Atualmente, no estado de São Paulo, as Clínicas Beneva realizam esse tipo de procedimento de acordo com um protocolo criterioso, em ambiente hospitalar e com acompanhamento constante de profissionais de saúde.
Esse protocolo exige que os pacientes passem por um período de abstinência de pelo menos 30 dias para evitar os possíveis riscos da ibogaína no organismo. Importante ressaltar que essas clínicas estão sob a direção e supervisão do Dr. Bruno Rasmussen, que não apenas realizou uma série de investigações sobre os efeitos da ibogaína em pacientes com problemas de consumo dependente, mas também tratou mais de 2.000 pessoas com essa substância em seus 27 anos de atividade.
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